TW: abuso (implícito)

Eu sabia que não deveria sorrir.

Minhas pernas doíam, o estômago se embrulhava e a boca estava seca, como se tivesse comido areia morna. Tudo fruto da festa da noite passada.

O sol já havia nascido há algum tempo quando cheguei ao cemitério. Felizmente, não era muito longe de casa e eu sabia que o enterro já havia começado.

Observava de longe, escondida atrás de uma árvore, aquelas pessoas lamentarem a morte daquele homem nojento e terrível enquanto o pastor entoava palavras de amor e compaixão que me enojavam. Como poderiam amá-lo quando ele me tocou quando não deveria, onde não deveria? Já fazia alguns anos, mas ainda me assombrava quando fechava os olhos ou quando o toque vinha de outro.

Tentei descobrir qual daquelas mulheres chorosas, de óculos escuros, era casada com ele. Será que ela sabia que agora estava livre?

A pior parte era ver o meu pai no meio deles. Como ele poderia estar ali quando ele sabia? E se ele não sabia, como poderia não saber? Estava tão óbvio… aconteceu debaixo de seu nariz, dentro de sua casa, cometido por seu colega de trabalho e amigo de bar.

Que ele queime no inferno.

Sorri de novo sem que nenhum tipo de remorso me atingisse. Estava cansada do remorso. Tudo que sentia era alívio.

Agora que havia me certificado que era real, virei as costas e comecei a ir para casa, mas algo na esquina seguinte me impediu de continuar.

Reconheci o topo da sua cabeça castanha e suada ao se curvar para vomitar na beira da calçada.

Dessa vez a culpa me alcançou. Era ele! O garoto que havia me tocado durante toda a noite anterior.

Expulsei o sentimento de mim. Aquilo não era a mesma coisa. Eu havia permitido que o fizesse. Além disso, foi diferente, carregado de uma ternura que havia me surpreendido mesmo na embriaguez e no desconhecido. Tinha beijado minha testa enquanto esperávamos na fila para comprar bebida, acariciado meus cabelos quando fiquei sonolenta, me abraçado durante o tempo em que dançávamos na pista.

Eu disse ao meu cérebro: Não, isso não é a mesma coisa.

Me aproximei devagar enquanto ele limpava a boca com as costas da mão. Já ia cumprimenta-lo quando ele sacudiu as mãos para mim.

— Gostaria muito que não tivesse me visto assim — riu, sem graça, afastando os cabelos grudados na testa.

— Você está bem? — perguntei, olhando ao redor em busca de um vendedor de água, mas é claro que não haveria ninguém vendendo nada a uma quadra de distância do cemitério local.

Ele cuspiu no chão e tirou do bolso um pacote de balas de hortelã. Enfiou uma na boca e me ofereceu outra. Minha boca de areia salivou. Aceitei o doce e agradeci.

— O que faz aqui? — perguntou primeiro que eu.

Escondi a bala na bochecha esquerda antes de responder:

— Moro a duas quadras daqui, mas estava… fazendo uma visita.

— Veio direto da festa? — questionou, me observando.

Dei de ombros, fingindo indiferença.

— E você?

— Isso vai parecer muito mórbido, mas estou indo a um enterro. — Ele apertou os lábios rechonchudos como se estivesse ainda mais constrangido por aquilo do que pelo vômito.

— E veio direto da festa? — repeti sua frase, causando-lhe uma risada afetada.

— Eu precisava me distrair… por isso fui a festa. Se quer saber, você ajudou bastante. — explicou.

— Eu sou mesmo uma boa distração — comentei, sem querer, soando mais magoada do que engraçada. Ele percebeu também.

— Não é exatamente do que eu te chamaria. Pretendia te chamar para sair um dia desses, mas depois desse nosso encontro, — sinalizou o espaço entre mim e ele como se apontasse para o tempo presente — descartei a possibilidade, por causa de todo o vômito, do enterro e tudo mais.

Eu ri.

Depois de alguns segundos de silêncio, analisei o seu rosto que observava além de mim, como se pudesse enxergar o cemitério dali.

Um pensamento pairava sobre minha cabeça, terrível demais para que eu perguntasse. Mas agora o meu estômago estava ainda mais embrulhado e a bala em minha boca ficava cada vez mais enjoativa. Eu seria a próxima a vomitar.

— Está triste? — sondei.

— Claro que sim, — respondeu de um jeito ensaiado, desprovido de emoção.

— Está? — forcei a pergunta, exigindo mais do que aquela resposta. Queria cuspir a bala.

— Tenho que estar. Estou triste, mas também estou aliviado. —  Confessou de uma vez. —  Vim por causa da minha mãe, entende? Mas estou aliviado. — Sua frase soou como um balbucio.

Senti o gosto da bile.

— Aliviado? — repeti com dificuldade.

— O meu pai… ele não era um cara legal. — Ele baixou os olhos e disse mais algo que não consegui ouvir. — É melhor eu ir… já começou faz um tempo.

Anui e voltei a andar. Não me despedi e nem olhei para trás, mas senti seu toque quente em meu ombro e congelei.

— Eu te ligo.

Sua mão se demorou ali e senti a assimetria do toque com a lembrança das mãos dele, me esforçando para lembrar que aquele garoto não era o seu pai, assim como eu não era o meu. Meu corpo relaxou com a realização e mesmo sabendo que não deveria, cheguei à porta de casa com um tipo diferente de sorriso, carregado da leveza do fantasma do toque afável, concedido. Questionei a temporariedade, antes tão determinada, como normalmente acontece nas festas, daquilo que poderia não dar em nada, mas que ainda assim já era algo.

Sentindo o vento frio, resquícios da madrugada, com os braços ao redor do meu próprio corpo, percebi que pertencia a mim mesma a ponto de sorrir quando não devia e ser tocada apenas quando desejasse.